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Digital Health

Saúde digital e os elementos para a tempestade perfeita

No âmbito do seu 30.º aniversário, o INFARMED promoveu, ontem, a conferência “Utilização de Dados em Saúde”. Ao longo do dia, vários especialistas discutiram o potencial da utilização de dados ao longo de ciclo de vida do medicamento, bem como as tecnologias digitais no acesso a tecnologias de saúde. Eduardo Freire Rodrigues, cofundador e CEO da UpHill, abordou o potencial das soluções digitais para melhorar a saúde.

Eduardo Freire Rodrigues

September 26, 2023 · 6 min read

Transcrição de registos clínicos por voz, receitas sem papel, agendamentos e prescrições automáticas, doentes seguidos por assistentes automáticos ou mesmo cirurgias auxiliadas por robots não são ficção científica. A somar aos anteriores há inúmeros exemplos de como a saúde digital redesenha a forma como a Saúde alcança, interage, previne e trata os cidadãos ao longo de uma relação que se quer cada vez mais contínua, proativa, próxima e segura.
De acordo com os resultados da 2.ª edição do Barómetro da Saúde Digital da APAH, a teleconsulta é a área mais explorada em Portugal - utilizada em 30% das instituições do sistema de saúde – sendo que a gestão do doente crónico (telemonitorização) é apontada como a solução de Inteligência Artificial com maior potencial de implementação por praticamente metade das instituições. A baixa literacia ocupa o lugar cimeiro na lista de barreiras ao desenvolvimento de mais projetos.
Neste artigo, construído com base na apresentação feita no âmbito da sessão “Tecnologias digitais no acesso a tecnologias de saúde”, exploro as oportunidades, as necessidades e os desafios da saúde digital, sob o ângulo das soluções digitais enquanto ferramentas para melhorar a prestação de cuidados de saúde.

Mais doentes, mais tecnologia, mais investimento e sistemas de saúde que gritam por alternativas

As necessidades

Vivemos hoje a tempestade perfeita para o crescimento da saúde digital. Em pano de fundo, o crescimento contínuo da população global, alimentado pela esperança de vida progressivamente mais longa: as estimativas apontam para que a população mundial com 60 anos ou mais atinja o marco dos 2 mil milhões em 20501, praticamente o dobro dos números atuais, evidenciando-se, assim, a idade como um fator de risco adicional para a multimorbilidade e para a necessidade de articulação de cuidados multidisciplinares, em jornadas de cuidados contínuas.
O volume e necessidades aumentam, mas, na sua maioria, permanecem sem resposta. De facto, para responder ao aumento do número de doentes com múltiplas doenças crónicas seriam precisos mais 40 milhões de profissionais de saúde, a nível mundial, até 2030.2 No entanto, Na Europa, mais de 40% dos médicos irão reformar-se nos próximos 10 anos.3
Os sistemas de saúde estão à beira do colapso e o relatório da Evolução do Desempenho do Serviço Nacional de Saúde em 2022, publicado, recentemente, pelo Conselho das Finanças Públicas, reforça a ideia de que é preciso encontrar alternativas. O aumento da atividade já não é suficiente para reverter a situação: em 2022 realizaram-me mais 138 mil consultas hospitalares e mais 95 mil operações cirúrgicas que em 2021, mas as listas de espera – tanto para primeira consulta como para cirurgia – continuaram a aumentar.

As oportunidades

Nem tudo é mau: conectividade e digitalização são apenas dois exemplos de palavras que invadiram o discurso comum e não foi por acaso - medeiam a forma como vivemos, como nos relacionamos, como interagimos. Se por um lado, as pessoas têm mais necessidades e exigências – tanto na saúde como na doença – estamos também perante gerações indubitavelmente mais digitais e conectadas que as anteriores.
Numa altura em que o desequilíbrio entre as necessidades da população e a disponibilidade de recursos humanos na saúde enche manchetes e alimenta acesos debates públicos, a saúde digital representa, indubitavelmente, uma janela de oportunidade. Por um lado, permite investir na prevenção e intervenção precoce, reduzindo a necessidade dos doentes serem admitidos num hospital ou outra instituição de saúde; por outro, pode mesmo substituir tarefas de baixo valor que ainda consomem muito tempo de profissionais de saúde altamente qualificados, sem motivo que o justifique.
Adicionalmente, as soluções de digital health estão também a proliferar a uma velocidade sem precedentes e a hegemonia dos EUA enquanto berço destas soluções começa a dar sinais de abrandar: de acordo com os dados da CB Insigths, 25% das empresas tecnológicas mais promissoras da área estão fora dos Estados Unidos,4 o valor mais alto de sempre. Crescem e diversificam-se as soluções e cresce também o investimento, neste caso na ordem dos 3 mil milhões de dólares por trimestre.5
As certezas
Tal como reitera um editorial publicado na última edição do New England Journal of Medicine, a saúde digital deve, à semelhança de toda a medicina, ser baseada em evidência e contribuir para gerar evidência. E nesse capítulo há também vantagens já documentadas. Eis alguns exemplos:
  • Acesso: as tecnologias digitais permitem não só reduzir assimetrias geográficas no acesso a cuidados de saúde, como também constituem uma alternativa quando a disponibilidade, por exemplo de recursos humanos especializados é baixa, contribuindo ativamente para aumentar o acesso a cuidados. No Reino Unido, a utilização de iCBT (internet-delivered cognitive behavioural therapy) mostrou-se tão efetiva quanto o standard of care, quando utilizada com pessoas que estavam em lista de espera para consulta com psicólogo.6
  • Resultados: tendo em conta os benefícios que aportam na continuidade, proximidade e conveniência dos cuidados, as soluções de saúde digital têm também a capacidade de modificar comportamentos e, consequentemente, melhorar os resultados para os doentes. Uma revisão sistemática que avaliou a eficácia dos chatbots concebidos para melhorar os hábitos de atividade física, alimentação e sono, conclui que com as recomendações dadas ao doente por esta via, os doentes aumentaram 45 minutos o tempo de sono e ingeriram mais uma peça de fruta ou vegetal por dia.7
  • Eficiência: a eficiência é também um ponto extremamente importante nas soluções de saúde digital, na medida em que permitem, por um lado, automatizar um conjunto de tarefas de baixo valor, e por outro, estratificar os doentes de acordo com o seu risco. Desta forma, libertam os profissionais de saúde de tarefas que não dependem do raciocínio clínico e reduzem os custos associados ao seguimento dos doentes. Um ensaio clínico avaliou o impacto de uma intervenção stepped care (análise preditiva combinada com intervenções personalizadas) e conclui que o modelo reduziu os custos por doente em cerca de 3 mil euros.8
  • Personalização: através da recolha de dados em tempo real e da sua utilização para alimentar jornadas de cuidados personalizadas, que são permanentemente ajustadas e melhoradas de acordo com os resultados de cada doente, as soluções digitais representam também enormes vantagens no âmbito da personalização. A experiência de uma jornada baseada na evidência com automatização digital para a gestão ambulatória da insuficiência cardíaca num hospital português provou ter um impacto positivo nos doentes, nos profissionais de saúde e na instituição.9
  • Qualidade: aumentando a personalização, a capacidade de seguimento, a efetividade das decisões e a antecipação de cuidados, as ferramentas de saúde digital têm também impacto direto na qualidade. Por exemplo, a utilização de um sistema de suporte à decisão digital no processo de prescrição terapêutica e meios complementares de diagnóstico foi associada a um aumento de 6% da compliance com as melhores práticas.10
  • Conveniência: tal como anteriormente referido, as soluções que permitem monitorizar os doentes à distância, aumentando a sua segurança e, simultaneamente, reduzindo a dependência face às unidades de saúde, aportam também vantagens relacionadas com a conveniência dos cuidados. Um estudo global no qual participaram 250 doentes com Parkinson conclui que, através de algoritmos de computer vision, é possível fazer a monitorização desta patologia, estando o neurologista no hospital e o doente em casa.11

Literacia e interoperabilidade: os desafios que permanecem depois da tempestade

 A integração de soluções digitais na prestação de cuidados, que se quer, por motivos de eficácia, eficiência e redução de custos, cada vez mais contínua e integrada, vai ser cada vez mais difícil quanto mais fragmentadas são as soluções utilizadas. Neste contexto, é fulcral o investimento em interoperabilidade técnica e semântica, o desenvolvimento de sistemas centrais, que sejam pensados numa perspetiva de plataforma e não de produto, bem como desenhados processos assistenciais de cuidados – ainda antes de serem digitalizados.
 Por outro lado, é imperativo promover a equidade no acesso a tecnologias de saúde e, neste âmbito, considerar o investimento em literacia em saúde, mas também uma lógica de comparticipação para que aquilo que já está disponível não seja apenas utilizado por quem pode pagar. De facto, o relatório Digital Health in the European Region: the ongoing journey to commitment and transformation, publicado no início do mês pela OMS, aponta o fosso digital no domínio da saúde como um dos principais riscos para o futuro dos sistemas de saúde na era digital.
De acordo com o documento, o fosso está a ser criado devido à implantação e aceitação desiguais das soluções digitais e implica que milhões de pessoas em toda a região da Europa e Ásia Central ainda não podem beneficiar da tecnologia de saúde digital. É urgente resolver esta desigualdade através de investimentos específicos em tecnologia e do desenvolvimento de competências e capacidades dos prestadores de cuidados de saúde, para que todas as pessoas possam aceder e utilizar com confiança as tecnologias de saúde digitais, em especial as mais suscetíveis de beneficiar, no entanto, pouco mais de metade dos países da região desenvolveram políticas para a literacia digital em saúde e implementaram um plano de inclusão digital.
"É uma triste ironia que as pessoas com competências digitais limitadas ou inexistentes sejam frequentemente as que mais beneficiam das ferramentas e intervenções digitais no domínio da saúde, como os idosos ou as comunidades rurais. É necessário resolver este desequilíbrio para a transformação digital do sector da saúde", afirmou Hans Henri P. Kluge, diretor regional da OMS para a Europa, citado em comunicado de imprensa.
Uma nota final para a necessidade de monitorização da evidência associada a estas soluções, tanto pelos fabricantes como pelas autoridades competentes e para a urgência de uma estratégia de dados nacional, assente na adoção de standards e no estabelecimento de requisitos mínimos para os fornecedores de software.

O caminho: saúde digital enquanto enabler de sistemas de saúde mais equilibrados

Os sistemas de saúde caracterizam-se, atualmente, por participações desiguais por parte de profissionais de saúde e utentes.
Aos profissionais de saúde cabe a gestão do doente, burocracias inerentes ao dia-a-dia, prevenção da doença, seguimento – nomeadamente da doença crónica – resultando num volume de tarefas extremamente pesado e variável no que diz respeito à sua complexidade. A título de exemplo, um relatório divulgado pela AMA, revela que um terço dos médicos gasta pelo menos 20 horas por semana em tarefas administrativas, num contexto em que a carga laboral é a principal causa de burnout destes profissionais.
Por outro lado, o utente está, na generalidade dos casos, desconectado do seu percurso de cuidados, desinformado acerca do mesmo, o que justifica a não adesão ao plano terapêutico e a sua baixa eficácia. Além do impacto nos outcomes, esta problemática é também sinónimo de custos acrescidos: no caso das intervenções cirúrgicas, 1 em cada 5 cancelamentos deve-se à falta de comparência dos doentes que poderia ser revertida com maior envolvimento dos pacientes na jornada de cuidados e melhor de navegação.12
A saúde digital, alicerçada no redesenho dos processos, em modelos tecnológicos fundacionais e em plataformas generalizadas - disponíveis à generalidade dos cidadãos - equilibra os sistemas de saúde, conferindo mais resolutividade ao utente e reduzindo, simultaneamente, a utilização de recursos.
Porquê? Porque permite aumentar a continuidade e proximidade dos cuidados, sem aumentar o volume. Permite, por exemplo, substituir consultas de seguimento por momentos de comunicação assíncronos e automáticos; aumentar a frequência de seguimento dos doentes após a alta cirúrgica, aumentando, consequentemente, a sua segurança; evitar complicações, identificando-as precocemente e capacitando os doentes sobre os comportamentos a adotar.
Em suma, a saúde digital permite aumentar o perímetro dos modelos de saúde tradicionais para dimensões que são exigidas pelos utentes – doentes e saudáveis.
Assista à conferência completa, aqui.

References

  1. Ageing and health. (2022, October 1). Retrieved February 28, 2023, from https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/ageing-and-health 
  2. Boniol M, Kunjumen T, Nair TS, et al The global health workforce stock and distribution in 2020 and 2030: a threat to equity and ‘universal’ health coverage? BMJ Global Health 2022;7:e009316. 
  3. Tercatin, R. (2022, September 15). Shortage of health workers is a 'ticking time bomb' – even in Europe. Retrieved February 28, 2023, from https://healthpolicy-watch.news/shortage-of-health-workers-is-a-ticking-time-bomb-even-in-europe/ 
  4. CB Insights. (2022, December 7). The Digital Health 150: The most promising Digital Health Companies of 2022. CB Insights Research. https://www.cbinsights.com/research/report/digital-health-startups-redefining-healthcare-2022/ 
  5. CB Insights. (2023, May 23). State of Digital Health Q1’23 Report. CB Insights Research. https://www.cbinsights.com/research/report/digital-health-trends-q1-2023/ 
  6. Richards, D., Enrique, A., Eilert, N. et al. A pragmatic randomized waitlist-controlled effectiveness and cost-effectiveness trial of digital interventions for depression and anxiety. npj Digit. Med. 3, 85 (2020). https://doi.org/10.1038/s41746-020-0293-8​
  7. Singh, B., Olds, T., Brinsley, J. et al. Systematic review and meta-analysis of the effectiveness of chatbots on lifestyle behaviours. npj Digit. Med. 6, 118 (2023). https://doi.org/10.1038/s41746-023-00856-1​
  8. Nikolova-Simons, M., Golas, S.B., den Buijs, J.o. et al. A randomized trial examining the effect of predictive analytics and tailored interventions on the cost of care. npj Digit. Med. 4, 92 (2021). https://doi.org/10.1038/s41746-021-00449-w​
  9. Ricardo Ladeiras-Lopes, Clara Jasmins, Válter Fonseca, Joana Feliciano, David Rodrigues. Experience from an evidence-based journey with digital automation for heart failure outpatient management in a Portuguese hospital, Revista Portuguesa de Cardiologia, 2023.​
  10. Kwan J L, Lo L, Ferguson J, Goldberg H, Diaz-Martinez J P, Tomlinson G et al. Computerised clinical decision support systems and absolute improvements in care: meta-analysis of controlled clinical trials  BMJ  2020;  370 :m3216 doi:10.1136/bmj.m3216​
  11. Islam, M.S., Rahman, W., Abdelkader, A. et al. Using AI to measure Parkinson’s disease severity at home. npj Digit. Med. 6, 156 (2023). https://doi.org/10.1038/s41746-023-00905-9​
  12. Kumar, R., & Gandhi, R. (2012). Reasons for cancellation of operation on the day of intended surgery in a multidisciplinary 500 bedded hospital. Journal of anaesthesiology, clinical pharmacology, 28(1), 66–69. https://doi.org/10.4103/0970-9185.92442

Eduardo Freire Rodrigues

CEO & Co-founder

Eduardo is a Public Health specialist, CEO and co-founder of UpHill. He has a master's degree in medicine from NOVA University of Lisbon and a postgraduate degree in clinical research from Harvard University. He is also a visiting assistant in Digital Health at ISCTE and NOVA Medical School. Early on, he learned how to code at the age of 14 and became passionate about it since then.

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